segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Entrevistas

Soren Kierkegaard deixou-nos saber que as pessoas usam a liberdade de expressão para compensar a liberdade de pensamento a que raramente recorrem. Numa sociedade com base democrática e no valor dos direitos humanos, a não aceitação de uma opção sexual é contraditória. A Com'out (uma revista dirigida à comunidade LGBT) e o José (nome fictício), homossexual, perspectivaram em termos abrangentes e pessoais, respectivamente, esta situação.


  • Entrevista à Com’Out: “Há gays que não participam pelo folclore”

Diagnóstico: Olá Eduardo! Antes de mais obrigada por acederes à nossa entrevista e parabéns pelo sucesso da revista. Porquê, como e quando surge a Com’Out? A quem se dirige?

Com’Out: A Com’Out surgiu em Julho de 2008 nas bancas. A ideia surgiu depois de uma conversa com o advogado Luís Grave Rodrigues, que defende o mediático casal lésbico (Helena e Teresa) que recorreu ao Tribunal Constitucional para se poder casar em Portugal. Nessa troca de ideias, chegou-se à conclusão que faltava uma revista dirigida à comunidade LGBT no nosso país. Uma revista que pudesse interessar a este público e a todos os heterossexuais que vêem nela um ponto de informação sobre uma realidade que desconhecem ou que apenas têm contacto por meio de amigos e familiares LGBT, mostrando uma realidade diferente e diversa de uma comunidade que se estima seja cerca de 10 por cento da população portuguesa. Se praticamente todos os países mais avançados da Europa têm, por que não Portugal?

D: Acredita no poder da palavra?

C: Se não acreditássemos este projecto não faria sentido. Esperamos que a nossa palavra venha a ter outras consequências para além das que já teve e tem. Muitos leitores ultrapassaram muitos medos e já nos agradeceram por isso. Mas ainda há muitas portas para abrir e terreno por trilhar.

D: Numa escala de 0 a 10, qual foi o nível de adesão das pessoas aquando do lançamento? Em que medida se manifestou?

C: É uma escala difícil, sempre subjectiva. Pensamos que o nível de aceitação é bastante grande e na generalidade as pessoas manifestaram--se muito surpreendidas pela qualidade da revista. Sob este prisma a escala seria 9, no prisma da divulgação ainda há muito a fazer. Sentimos que ainda muita gente não conhece ou não compra, por variados motivos, a Com’Out.

D: Falando em dificuldade na divulgação, já nos fizeram chegar a resistência, por parte de alguns postos de venda, à difusão da revista. Serão eles pequenos exemplos de um grande problema?

C: São de facto um exemplo da pequenez da mentalidade que ainda existe no nosso país. Temos consciência de que os preconceitos não são erradicados de um dia para o outro, mas esperamos que aos poucos estes focos de resistência desapareçam. Uma vez mais, sabemos que existem pontos de venda que de início não queriam a revista e agora já a pedem. Devagar vamos lá…

D: Países como o Sudão, o Irão e a Mauritânia, punem a homossexualidade com pena de morte. Há explicação para uma atitude que além de conservadora, vai contra os direitos humanos?

C: Há a explicação de uma cultura que existe desde há centenas de anos e cujas mentalidades são difíceis de mudar, principalmente quando são os próprios governos a estimular esses comportamentos homofóbicos, produzindo legislação cada vez mais dura e penalizante. São governantes que comandam na base do medo e nas leis religiosas atávicas, que interpretam à sua maneira. A ignorância a que o povo está votado, faz com que acatem tudo.

D: Em Portugal, embora se proteja a homossexualidade da pena de morte, existe ainda um forte estigma associado a orientações sexuais que não a considerada normativa. Quais as maiores dificuldades que se apresentam a um homossexual numa sociedade caracteristicamente heterossexista como a portuguesa? Pode dizer-se, no contexto da comunidade LGBT, que nascer em Portugal é um azar?

C: Não chegaríamos a esse ponto. Em Portugal não é um azar, assim como também não é uma sorte. Estamos numa espécie de limbo: já subimos alguns patamares, embora ainda haja muito por fazer. Neste momento, comportamentos fora da norma parecem ser mais tolerados, mas ainda se assiste ao domínio da hipocrisia. Muita gente faz às escondidas aquilo que condena: políticos homossexuais chumbam leis favoráveis aos homossexuais. De uma forma geral, pode-se ser gay desde que não haja manifestações públicas de afecto ou que não se seja muito evidente nos comportamentos.

D: Fala-se muito em Lesbigaytransfobia, por parte dos heterossexuais. Poderá falar-se em homofobia, no âmbito da bissexualidade? Ou o inverso? Até que ponto os vários membros da comunidade LGBT mantêm uma relação saudável e de respeito?

C: Apenas uma coisa une todos os subgrupos da comunidade LGBT: a luta contra uma sociedade homofóbica. Claro que existem ataques dentro da própria comunidade. Parece haver muita divisão e muita crítica dentro dos elementos das várias culturas: lésbicas, gays, bissexuais, trangéneros e etc. muitas vezes não convivem bem uns com os outros. Muitos gays, por exemplo, não acreditam na bissexualidade. Para eles existem, sim, pessoas com medo de assumir uma orientação exclusiva pelo mesmo sexo, uma vergonha em revelar-se como gay ou lésbica.

D: Muitas organizações, à semelhança do que acontece com a “Panteras Rosa”, presidem manifestações em defesa dos direitos da comunidade LGBT, como é o caso da parada gay. Qual a sua opinião acerca destes movimentos? Serão eles representações fidedignas e honrosas da comunidade LGBT ou, por outro lado, contributos para um estereótipo com conotação negativa?

C: Estas manifestações, por muitos detalhes que se possam criticar, têm ajudado à visibilidade de uma comunidade que está habituada a estar no armário, como se tivesse vergonha de ser quem é. Estas paradas têm um lado festivo muito efusivo, mas não se pode julgar o todo pela parte. Há gays que não participam pelo folclore. Mas se não fossem estes movimentos, não continuaria tudo como há 20 anos atrás?

D: Sabe-se que os dois projectos, do Bloco de Esquerda e do Partido Ecologista “Os Verdes”, discutidos no Parlamento, dia 10 de Outubro, a favor do casamento entre pessoas do mesmo sexo, foram indeferidos com os votos do PS, PSD e CDS-PP. Perdeu-se uma oportunidade de fazer História em Portugal?

C: Perdeu-se uma grande oportunidade para se fazer História, de sermos um dos países na linha da frente nos direitos pela igualdade. Cremos que é apenas uma questão de tempo porque, geralmente, as pessoas receiam aquilo que não conhecem, mas se lhes forem mostradas diferentes realidades, os preconceitos podem ser dissolvidos. Politicamente é prioritário mudar a legislação para que as mentalidades também mudem. Podemos ver como em Espanha a legislação ajudou a sociedade a mudar de ideias em relação aos homossexuais. A maioria não pode oprimir a minoria e têm de ser dadas as mesmas oportunidades.

D: Em que medida é urgente passar de um estado de omissão legislativa ao estabelecimento de parâmetros legais no que diz respeito à transexualidade?

C: Nos países da América Latina e Brasil têm-se dado passos de gigante no sentido de apoiar as pessoas que desejam mudar de género. Pensamos que faria todo o sentido os países da Europa seguirem o exemplo. São pessoas que precisam de todo o apoio possível, dada a sua situação já de si difícil. A dificuldade que há em mudar o nome no Bilhete de Identidade é mais um peso psicológico que os transexuais têm de suportar. Se é possível mudar de sexo, por que não apoiar o processo plenamente? É uma falta de respeito, no mínimo, fazer com que uma pessoa que mude de sexo permaneça com o seu nome original. Parece um castigo.

D: Será a adopção por casais homo/bi/transexuais uma questão de igualdade de direitos (dos heterossexuais versus comunidade LGBT) ou de defesa dos direitos das crianças a adoptar? Poder-se-á colocar a hipótese de as crianças criadas por casais homo/bi/transexuais serem mais (ou menos) propensas a homo/bi/transexualidade? Ou, em oposição, será a sinergia mais importante do que a estrutura familiar?

C: Inúmeros estudos – e são cada vez mais – têm demonstrado que as crianças adoptadas por casais homossexuais se adaptam perfeitamente à sociedade. Não há um único estudo conhecido que conclua que a criança é mais infeliz ou discriminada ou que venha a sofrer traumas. Em Espanha, a aprovação da lei da adopção e do casamento permite-nos concluir no terreno, e não só de uma forma teórica, que os casais homossexuais são tão ou mais aptos para dar amor e cuidar de uma criança, e que estas crianças crescem com uma visão menos preconceituosa e mais inclusiva. Pelo que vem a ser estudado, não permitir a adopção por casais homossexuais é completamente desajustado quando se permite deixar as crianças com famílias disfuncionais ou em instituições que as maltratam.

D: A comunidade LGBT é considerada uma minoria. Será mesmo assim, ou as estatísticas estão ainda longe da realidade? Qual o preço a pagar pela saída do armário?

C: A comunidade LGBT não pode, nem nunca poderá ser quantificada de uma forma científica. Haverá sempre quem não se assuma, nem para ele próprio. Presume-se que cerca de 10 por cento da população seja homossexual ou bissexual. Cremos que seja um número que a pecar será por defeito. O preço a pagar pela saída do armário? Família que não aceita, patrões que tornam a vida difícil, amigos que nos veêm com outros olhos, discriminação nas mais variadas formas. É preciso ser forte ou aprender a sê-lo. Uma coisa é certa pelos relatos que temos tido: não há ninguem que se arrependa de ter saído do armário. O peso que sentiam desvanece-se com o tempo e as pessoas vivem mais em pleno e de bem com elas próprias.

D: Um desejo para 2009 …

C: Que toda a gente seja e que deixe ser feliz. Aquilo que parece tão fácil é ao mesmo tempo tão difícil e não há razões para que assim seja.



  • Entrevista a "José": “Não tenho plena liberdade de expressar alguns sentimentos em público, como andar de mãos dadas com o meu namorado”


Diagnóstico: Olá José! Primeiro que tudo, obrigada pela disponibilidade e abertura com que acedeste ao nosso pedido. Pronto?

José: Claro que sim.

D: Segundo Alfred Kinsey, a classificação dos seres humanos quanto à sexualidade em apenas duas categorias: “exclusivamente homossexual” e “exclusivamente heterossexual” é errónea. Defende, por outro lado, a existência de graus intermédios, situados numa escala de zero a seis. Consideras a homossexualidade um “estado” flexível ou, em oposição, comportamentos homossexuais não se coadunam com rasgos de heterossexualidade? Qual o teu lugar nesta escala?

J: Não acredito em escalas de comportamentos. Acredito sim, que as pessoas não escolhem desenvolver sentimentos homossexuais e que quando alguém nasce não está pré-programado para ser homossexual para sempre. Por isso, penso que a homossexualidade é um estado flexível.

D: Um estudo Americano concluiu que gays e lésbicas são mais gentis e menos agressivos com os seus parceiros e, ainda, que homossexuais e bissexuais têm maior tendência para sofrer de depressão. O que tem a tua experiência a acrescentar ou retirar a estas asserções?

J: É muito subjectivo o facto de os homossexuais serem mais gentis e menos agressivos com os seus parceiros. Relativamente à depressão, a repressão da sociedade pode, de facto, conduzir a um desequilíbrio psíquico e daí a possível maior susceptibilidade.

D: Achas que, actualmente, à semelhança do que acontece com a OMS (que considerou a homossexualidade uma doença mental ate 1990), a sociedade dissocia a homossexualidade do role de distúrbios psiquiátricos?

J: Penso que sim. A sociedade está mais complacente com os homossexuais, e as novas gerações apresentam menos preconceitos e estereótipos. Acredito que ainda há um longo caminho a percorrer, mas actualmente a sociedade cada vez menos encara a homossexualidade como uma doença e mais como algo normal e natural.

D: Quais as maiores dificuldades que se apresentam a um homossexual numa sociedade caracteristicamente heterossexista como a portuguesa? Já foste alvo de algum comportamento discriminatório?

J: Normalmente as dificuldades começam dentro de casa, quando os pais descobrem que o filho é gay ou lésbica e o insultam, espancam ou até expulsam de casa. Outra das grandes dificuldades é a violência verbal na rua, nas escolas e por grande parte da sociedade que ainda se refere aos homossexuais com termos pejorativos. Eu, como homossexual não assumido, os únicos comportamentos discriminatórios de que fui alvo foram alguns insultos verbais na escola ou e na rua.

D: Além de bom rapaz és comprometido. Publicamente, esforças-te por conter demonstrações de carinho?

J: Nunca fiz grande esforço para me conter. Quando sinto necessidade de demonstrar algum carinho, faço-o discretamente. Porém, não tenho plena liberdade de expressar alguns sentimentos em público, como andar de mãos dadas com o meu namorado, beijá-lo e outras coisas normais que casais heterossexuais fazem em público.

D: Sei que fizeste teatro durante muitos anos. É a saída do armário um processo semelhante ao do actor que, nos bastidores, se despe de uma personagem no final de uma peça de teatro? Já passaste por essa metamorfose? Que impacto teve na tua vida?

J: Eu penso que o sentimento poderá ser parecido mas contextualmente diferente; no teatro um actor interpreta uma personagem, que por mais que tenha a ver consigo nunca é a sua própria personalidade, o seu “eu”. Pois eu nunca fui um “actor” da minha vida. Sempre tentei viver segundo os meus princípios, respeitando a minha integridade e preservando os meus valores. Mas uma grande parte de mim era escondida: a minha orientação sexual. Tê-la revelado ao entrar para a faculdade, foi como encontrar a minha “plenitude pessoal”, onde não há espaço para ressentimentos, vergonha, mentiras, omissões, atitudes e comportamentos controlados. Este foi o meu preço.

D: Muitas organizações, à semelhança do que acontece com a “Panteras Rosa”, encabeçam manifestações em defesa dos direitos da comunidade LGBT, como é o caso da parada gay. Qual a tua opinião acerca destes movimentos? Serão eles representações fidedignas e honrosas da comunidade LGBT ou, por outro lado, contributos para um estereótipo com conotação negativa? Já integraste algum?

J: Sinceramente, não me identifico muito com a ambiente e a filosofia vivida nessas paradas. Mas respeito, embora acredite que possam causar um estereótipo negativo na sociedade devido ao seu aparatoso e extravagante “espectáculo”. Poderiam haver outras formas de manifestação mais credíveis. Nunca integrei nenhuma e não era capaz de o fazer.

D: Qual a tua posição na adopção de crianças por casais homossexuais?

J: A favor. O amor e a convivência homossexual são uma realidade inerente à nossa sociedade e acredito que, tal como um casal heterossexual ou mesmo uma pessoa solteira, um casal homossexual poderá oferecer um lar onde haja amor, respeito, lealdade, assistência mútua e todas as possíveis condições necessárias à felicidade uma criança.

D: O casamento entre homossexuais é ainda proibido em Portugal. De que forma vai isso de encontro aos teus planos? Sonhas em constituir família?

J: O casamento nunca fez parte dos meus planos. Mas sonho em um dia assentar com uma pessoa e em constituir uma família.

D: Manuela Ferreira Leite disse em declarações ao Diário de Notícias: “Há com certeza aspectos jurídicos que podem ser regulados entre a relação de duas pessoas do mesmo sexo, desde que não se lhe chame casamento. Chame-se-lhe qualquer outra coisa, arranje-se um nome. Agora, com o baptismo de casamento... comigo não, com certeza.". Ao que tu respondes …

J: Sem comentários. Há que chamar as coisas pelos nomes. Não estará a ser um pouco contraditória? Penso, que com políticos destes a liderar partidos políticos, o país não irá para frente.

D: És católico? O que pensas da oposição da Igreja à prática da homossexualidade?

J: Se uma igreja que prega a palavra de Deus e afirma que o amor ao próximo é uma bênção aos olhos do Pai maior, condena a forma como parte dos seus filhos amam e são amados é, no mínimo, antagónica, contraditória e fútil. Se ela afirma que a forma que eu vivo é errada, reservo-me ao direito de dizer que tal igreja não passa de uma casa reprodutora de hipocrisia e um lugar profano.

D: O mundo homossexual é, à semelhança do que rezam os estereótipos, marcantemente promíscuo?

J: Por experiência própria, no mundo homossexual, a rapidez entre o conhecer-se e o ir para a cama é muito maior do que no heterossexual. Penso que isto acontece porque o sexo masculino, naturalmente, apresenta menos constrangimentos/impedimentos e o sexo e a troca de parceiros é visto de uma forma mais aberta. Acredito e penso que no mundo heterossexual também existe promiscuidade, só não é tão evidente.

D: Um desejo para 2009 …

J: Compreensão, respeito e tolerância.

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