segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Nós cá dentro... Eles lá fora...

Nós cá dentro...

No momento em que preenchi o boletim de candidatura para a universidade, aquilo que julgava ser a vida académica não correspondia à realidade. Desde o medo da primeira praxe, à euforia da latada, tudo passou demasiado depressa. O método de estudo foi completamente inovador e de início senti alguma dificuldade em habituar-me. Os meus únicos pensamentos eram: "não vou conseguir", "quero voltar para minha ilha, para junto da minha família". Contudo, graças à praxe e à latada, cultivei novas amizades e percebi que era possível conciliar o estudo com a diversão. Três meses após a minha chegada a realidade já é outra… Apesar de nunca esquecer o Pico, já adoptei a Covilhã como segundo lar.


Fabiana Pimentel, aluna do 2º ano da FCS (Medicina)

Eles lá fora...

Tendo nascido e vivido até os meus dezoito anos em Portugal, decidi fazer os estudos de Medicina na Université Catholique de Louvain (UCL), na Bélgica, escolha que não parte de um acaso, uma vez que tenho laços familiares com a capital europeia, mas que foi sobretudo motivada pela vontade de mudar radicalmente de ambiente e provar um pouco daquilo que a globalização nos pode oferecer: mobilidade.


Após ter, praticamente, concluído o meu quarto mês de faculdade na terra do Tintin, venho partilhar a experiência com os meus conterrâneos e futuros colegas de ofício, esperando de algum modo motivá-los para a aventura que é estudar num país que não é nosso.


Em jeito de metáfora, classificaria o primeiro ano de Medicina na Bélgica como um autêntico copo misturador que, após 9 meses de centrifugação, dá luz, não a um batido pestilento, mas a um conjunto de “verdadeiros” alunos de Medicina. Isto porque, contrariamente ao sistema de ensino português, que orienta desde cedo os jovens para determinados agrupamentos que restringem o leque de cursos a que temos acesso quando nos candidatamos ao ensino superior, o belga concede muita margem de manobra aos estudantes. Resultado: deparo--me com muitos colegas que nem fizeram o agrupamento de ciências no secundário, outros ainda, não pouco frequentes, que estudaram línguas mortas! Um tanto indiferentes às nossas sobrepesadas médias, as universidades belgas também abrem portas a estudantes medianos que queiram tentar a sua sorte em Medicina. Tudo isto resulta num primeiro ano que é a verdadeira prova de fogo que visa, por um lado, colocar todos os alunos no mesmo patamar de conhecimentos básicos e por outro, seleccionar os mais aptos. Qual dos melhores, um sistema que “corta o mal pela raiz”, como o nosso, ou um sistema que facilita o acesso, optando por uma selecção a posteriori, como o belga? É uma questão discutível sobre a qual prefiro não me pronunciar...


Assim sendo, o primeiro semestre assemelha-se a um “13º” que abarca tudo o que nós, portugueses, damos no secundário em Biologia, Física e Química, aprofundando, claro, os conhecimentos. Daqui surge a grande dor de cabeça chamada “Física Experimental” que, certamente não despertando curiosidade absolutamente alguma por parte dos leitores, se contenta com a breve menção. O segundo semestre já conta com algumas disciplinas mais específicas da Medicina, como a Anatomia, a Histologia e a Bioquímica mas, contas feitas, a Medicina em peso só chega no segundo ano...


Na óptica da selecção, a avaliação é feita quase na totalidade através dos exames finais, em Janeiro para o primeiro semestre e em Junho para o segundo, com possibilidade de se recorrer a uma segunda fase em Setembro para repassar exames com nota inferior a 12. Uma pequena percentagem da avaliação cabe às Aulas Práticas e... uma vez que o texto começa a tornar-se soporífero, passo a meandros mais interessantes da vida estudantil.


Antes de mais, a faculdade de Medicina da UCL não se situa no campus principal da universidade, em Louvain, mas veio implantar-se em Bruxelas, juntamente com as faculdades de Medicina Dentária, Farmácia e Ciências Biomédicas, por razões de proximidade com o Hospital universitário de Saint-Luc. Daí que, as grandes tradições académicas, praxes compreendidas, vividas muito intensa e diversificadamente em Louvain, chegam “um bocado” esbatidas a Bruxelas, após os 45 minutos de viagem de automóvel. Friso UM BOCADO porque, pelo que presenciei, o grupo de Bruxelas não brinca em serviço...


Quanto às praxes, são organizadas pelos “cercles” (círculos, em tradução à letra) das faculdades: Mémé, da faculdade de Medicina; Spix, da faculdade de Medicina Dentária e Pharma que não é mais do que uma “coligação” (pouco revelada na nomenclatura utilizada) entre os alunos de Farmácia e os de Ciências Biomédicas.


Ao contrário das praxes em Portugal, reservadas aos alunos do primeiro ano para fomentar o companheirismo entre os caloiros, as praxes belgas, ou usando a expressão correcta, os “baptizados”, ganham feições de verdadeiros “rituais de iniciação” (a quê, já não sei responder... talvez à cerveja) que, embora mais dedicados aos caloiros recebem frequentemente alunos do segundo ou até do terceiro anos.


Qualquer caloiro tem a liberdade de escolher o cercle em que quer fazer o seu baptizado, independentemente do curso, daí que nos primeiros dias de aulas se monta uma verdadeira campanha tentando cada cercle cativar o maior número possível de candidatos a praxados, bizarramente e sem qualquer razão lógica apelidados de azuis. Conservando todos anualmente a sua popularidade, o cercle Mémé consegue arrecadar sempre o maior número de caloiros. No entanto, que não se pense que me refiro a números astronómicos...


De facto, para pessoas mais contidas, sensíveis ou conservadoras, algumas actividades dos azuis podem adquirir proporções “catastróficas”, o que junto à famosa expressão “a fama persegue-te” e à impunidade do “livre arbítrio” faz com que num ano de boas colheitas o Mémé consiga pintar de azul uns 60 dos cerca de 500 alunos de Medicina e ainda esfregar as mãos de contente se até a prova final (o dia do baptizado) “sobreviverem” 30.


Estando-se no país do chocolate mas, sobretudo, da cerveja, ela é, claro, a rainha da festa. Aproveito para mencionar a maneira peculiar como se a bebe cá, talvez devesse dizer como se a envia rapidamente para o estômago (com possível viagem de regresso) - os afundanços. Rápido e curto: dois ou mais indivíduos desafiam-se para um “afundanço” e 3...2...1...ZÉRROU a cerveja tem de ser bebida em dois tragos (talvez em apenas um, para os mais experientes). Quem esvaziar o copo primeiro ganha (juízo, para além do balde de água fria no estômago). Em suma, os azuis têm uma caderneta a preencher com as mais peculiares formas de afundar cerveja (ex.: cascata: afundar duas cervejas ao mesmo tempo, com os copos elevados, ou, melhor dizendo, apenas uma, porque a outra deve propositadamente cair em cima do corpo... bizarro, eu sei).


Para além dos malabarismos com a bebida mãe, os azuis também têm de fazer uma série de actividades físicas e ingerir tudo aquilo que a imaginação dos praxantes é capaz de alcançar (larvas; cubos de caldo Knorr; café em pó; ração para animais de estimação; etc). Existem também uma série de “mitos” que actualmente já não se realizam (ou que podem eventualmente acontecer em Louvain mas não na minha faculdade), que criam uma imagem por vezes negativa dos baptizados e repelem muitos caloiros... Embora, sublinho, não tenha presenciado nenhuma delas, menciono algumas para satisfação das curiosidades mais tormentosas: dois caloiros de sexo oposto encontram-se nus e pintados cada um com uma cor primária, tendo de fazer surgir após momentos privados de escuridão uma única cor secundária em ambos os corpos; depilação mútua; sessões de “remo” para as caloiras (deixo a tarefa de descobrir a parte do corpo masculino utilizada para o efeito às perspicácias dos leitores)... De volta à realidade concreta, resta-me mencionar a actividade mais “desconfortável”, reservada para o dia do baptizado e para os indivíduos do sexo masculino (embora algumas mentes criativas já tenham considerado, sem sucesso, aplicá-la em modo alternativo às caloiras...): após algumas horas de olhos vendados, os caloiros são forçados a “escolher”, através do tacto, o utensílio que lhes vai, supostamente, mutilar o órgão sem o qual perdem a capacidade mais essencial da natureza - a propagação da espécie. Após a rápida operação, surpreendentemente indolor, os caloiros convencem-se, aterrorizados, de que perderam efectivamente o amigo insubstituível, porque deixam efectivamente de senti-lo. Retiradas as vendas e consumado o baptizado, vêm a saber que lhes pulverizaram o mastro com éter e que terão de esperar longos minutos até se poderem considerar novamente homens... Valha-lhes o final feliz.


Engraçadas e, certamente, inesquecíveis, as praxes proporcionam claro uma forma fácil de integração para os caloiros (sobretudo se quiserem integrar os “cercles”), mas não são de modo algum essenciais, algo que se constata facilmente pela percentagem limitada de aderentes. Ao longo do ano os vários “cercles” estão também encarregues de assegurar a manutenção de uma “taxa mínima” de animação, organizando cada um a sua “soirée” todas as semanas (terça, quarta e quinta). Mesmo sendo gradualmente menos frequentadas à medida que os exames se aproximam, as “soirées” são sempre boas ocasiões para descontrair e quebrar a rotina. Ainda assim, uma vez que a grande maioria dos estudantes aluga pequenos apartamentos (“kots”) nas redondezas da faculdade, organizam-se muitos convívios pelos vários kots que contam com a presença da senhora cerveja e do tradicional poker.


Embora aluguem kots para a semana, todos os estudantes têm por hábito passar o fim-de-semana em casa dos pais o que, para estudantes estrangeiros como eu, que por força “vivem” no seu kot, acaba tornando alguns fins-de-semana pouco interessantes... Aquilo que primeiro se estranha e depois parece nunca se entranhar é o facto de a partir das 19:00 horas ser difícil encontrar aberto um estabelecimento comercial (ao Domingo, uma impossibilidade durante todo o dia), algo que já não sucede com o frio glacial e os dias invernais de sete horas.


Agora, que me aproximo do final do texto, retomo a infeliz analogia do electrodoméstico para definir o mix cultural que encontrei na UCL. De facto, é fastidiosa a lista de diferentes origens dos estudantes, poucos de linhas puras, a maioria belgas, mas de pais estrangeiros. Sem dúvida, envolvendo alguns desafios de adaptação e, quiçá, algumas privações, considero esta minha experiência enriquecedora, sobretudo pela abertura a pessoas e a mentalidades totalmente novas. A Europa proporciona-nos cada vez mais oportunidades para conhecermos aquilo que há para além de nós, quer estudando no estrangeiro, quer optando pelo Erasmus, oportunidades que, acredito, poderíamos dispensar, não fossem os portugueses, por excelência, cidadãos do Mundo.

David Pereira
Aluno do 1º ano da UCL - Université Catholique de Louvain (Medicina)

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